Nos últimos dias eu tenho feito uma espécie de maratona de filmes de samurai (principalmente ou mais antigos), e confesso que fiquei um pouco decepcionado, não era nada daquilo que eu esperava, não temos lutas grandiosas, tudo é muito simples e às vezes jogado… mas ai eu percebi que o problema não era os filmes, mas eu.
Os filmes de samurai dessa época (1950/1970) em sua maioria, não queriam de fato mostrar batalhas grandiosas, mas sim mostrar mais sobre valores, comportamento de uma sociedade completamente diferente (até mesmo do Japão da época).
Quando eu percebi isso, os filmes melhoram e muito pra mim. Temos que entender que o Japão vinha a poucos anos de uma derrota da Segunda Guerra Mundial, os filmes dessa época além de obviamente fazerem alusões a isso, também queriam retomar valores esquecidos ao mesmo tempo criticar certas posturas de uma sociedade “patriarcal demais”.
E Portal do Inferno (1953) é um desses casos.
História
Podemos dizer que o filme tem duas narrativas (embora uma não faça tanta diferença), durante a rebelião de um clã, uma dama de companhia se passa pela irmã do imperador (você já viu isso em outro filme né?) para dar uma chance de fuga pra eles. Mas as coisas dão errado e sua comitiva é pega pelos revoltosos, mas um “honrado” samurai consegue salvá-la e acaba se apaixonando por ela.
Pois bem, o imperador consegue recuperar o trono com a ajuda desse “nobre” samurai e como “espólio de guerra” ele oferece para o samurai o que ele quiser, ele pede justamente um casamento com a mulher que ele salvou, mas temos um grande problema… ela já é casada.
Aqui talvez esteja o meu único problema com o filme, se ele tivesse se focado somente na história que queria contar o filme seria perfeito. Mas ao tentar se aprofundar demais em um contexto histórico (através de poucas cenas e muita narração) o filme passa a impressão de que queria se alongar e colocaram isso no meio.
Aliás é relativamente comum filmes japoneses desta época usarem vários contos para fazer um filme só, às vezes funciona quase tudo bem como é o caso de Contos da Lua Vaga (1953), às vezes parece forçado como foi nesse caso.
Mas porque eu disse talvez, porque de fato isso é apenas no comecinho, logo o filme se mostra a que veio. Um filme sobre obsessão amorosa, lealdade às tradições e o que também é comum nesse tipo de filme, a forma como a mulher japonesa era tratada nessa época.
Quebrando expectativas
Do começo ao fim, o filme quebra bastante o que pensamos ser cada personagem. Depois de um começo mais histórico (mais precisamente em 1159) o filme se foca basicamente em um “triangulo amoroso”, temos:
Moritô Endo (Kazuo Hasegawa) o que quer se casar com a casada, Lady Kesa (Machiko Kyô) a esposa desejada e Wataru Watanabe (Isao Yamagata) o marido.
E é aqui que o filme começou a me agradar (além da parte técnica que falarei mais pra frente), os três personagens são apresentados de uma forma pra gente, mas logo percebemos que eles não são o que aparentam ser, uns logo de cara outros só na última cena.
Quer um exemplo? Moritô Endo (Kazuo Hasegawa), esqueça essa história de que todo samurai é honrado e com valores morais, logo ele se monstra um dos piores personagens que já vi em filmes de samurai (a cena do cachorro meu deu ódio, se você assistiu sabe do que estou falando).
Mas a maior quebra de expectativa que o filme faz é em relação ao seu plot twist, ele entrega de proposito a sua virada poucos minutos antes dele acontecer. Mas isso não atrapalha nem um pouco, o fato de você saber (ou achar que sabe) o que vai acontecer, faz tal acontecimento ter um peso ainda maior do que teria.
Filme ou teatro?
Lendo por aí vi que muitas pessoas criticaram a forma como o filme é interpretado, de acordo com essas opiniões, ele é teatral demais. E de fato é, a questão é que é proposital, até porque o filme é baseado em uma peça de teatro, que por sinal é baseada no Teatro Noh, que de forma bem resumida são peças quase que ritualistas com música.
Não é à toa que Lady Kesa (Machiko Kyô) expresse seus sentimentos através do seu instrumento musical, isso é mais uma forma do filme gerar discussão sobre como a mulher era tratada naquele tipo de sociedade. Mesmo ela estando no “comando da situação”, afinal foi dado a ele o direito de escolha (o que já pode ser uma problemática), ela não expressa suas emoções de uma forma mais direta, afinal ela é uma mulher que está sendo disputada como se fosse um troféu.
Sem falar que isso dá uma cara mais poética para as cenas, principalmente quando você percebe de forma bem suave que ela esperava uma atitude mais emocional de seu marido, que por ser um samurai de fato honrado nunca via seu algoz como uma ameaça, afinal sua esposa era fiel e o amava (ou será que não como o final do filme sugere?).
Cada cena é uma pintura
Portal do Inferno foi o primeiro filme colorido japonês a ser lançado fora do Japão, o que de fato deixou muitos estrangeiros de queixo caído.
Ainda usando um estilo mais teatral, muitas cenas são visíveis os cenários artificias (e não é só pela época do filme) é tudo proposital. O uso de cores, principalmente na vestimenta dos personagens e principalmente na forma como Lady Kesa (Machiko Kyô) usa as cores e movimentos de suas roupas para expressar suas emoções.
Lembre-se estamos falando de um filme de 1953, se hoje já é difícil trabalhar cores e figurino em um filme, imagina naquela época. De fato, é aqui que o filme brilha de verdade.
Não é atoa que o filme ganhou o Oscar de Melhor Figurino em Cores e o Oscar Honorário de Melhor Filmes Estrangeiro, embora eu não leve em consideração o Oscar pra dizer se um filme é bom ou não.
Uma curiosidade interessante, enquanto alguns críticos ocidentais consideraram o filme “teatral demais”, no Japão acharam ele “ocidentalizado” devido a algumas cenas panorâmicas, legal essas visões diferentes de um mesmo filme né?
Ok Doug, mas vale a pena?
Apesar do gênero e do que o título sugere, Portal do Inferno é um filme simples em história, rico em discussões humanas e belíssimo esteticamente. Não espere porém uma aventura épica, o foco aqui é na história e na “tragédia grega” que os personagens se encontram.
Trailer (na verdade é o começo do filme rs)
Galeria de Fotos
Onde assistir Portal do Inferno (1953)?
Eu assisti Portal do Inferno (1953) a alguns anos através de um festival de cinema on line (inclusive fique sempre de olho nas minhas redes que sempre aparece esse tipo de festival eu compartilho por lá).
Alguns filmes podem não estar mais disponíveis no catálogo dos serviços de streamings e nem a venda, mas estou sempre atualizando os links… então fique sempre de olho.